quarta-feira, 17 de março de 2010

GLOBALIZAÇÃO E A UNIFICAÇÃO INDIVIDUALIZANTE COMO DESTRUIÇÃO DE UMA ÉTICA SOCIAL

Por: Tito Barros Leal de Pontes Medeiros


Canta tua aldeia e cantarás ao mundo.
Anton Tchekov


A globalização é um processo que se vem firmando desde o segundo quartel do século XV quando do início das grandes navegações encabeçadas por Espanha e Portugal. Foi neste período que primeiro se verificou a intensificação das trocas mercantis e, sobretudo, do conhecimento de outras culturas — nem sempre pacífico. O relacionamento do eu com o outro se afirmava, desde então, como precípuo problema das vivências sociais dos séculos vindouros.
As características básicas da primeira fase da globalização se devem a dois fatores importantes e historicamente simultâneos: o aumento da produtividade e a interação entre âmbito interno e o contexto mundial, decorrências diretas da crise do sistema feudal e das transformações das lógicas de trabalho (anteriormente artesanal, posteriormente mercantil).
Por cerca de seis séculos o movimento de trocas, seja de mercadorias, de informações, de relações diplomáticas e militares, etc, veio crescendo numa progressão quase geométrica sem sofrer interrupções nem mesmo das guerras que assombraram o globo ao longo deste tempo.
Foi no século XX, especialmente em sua segunda metade, que o fenômeno se constituiu em elemento fundamental para a compreensão das relações sociais em todo o mundo. Com o aumento na velocidade de transmissão de informações (telégrafo, telefone, rádio, televisão, Internet, etc) e com as transformações sofridas pela lógica do capital (acumulação primitiva, capital mercantil, capital industrial, capital especulativo, etc) o fenômeno se incorporou às dinâmicas sociais e ao cotidiano dos povos de todo o globo.
Este processo de “envolvimento político-econômico-cultural-social”, contudo, não pode ser compreendido dentro de parâmetros que neguem as exclusões sociais de todos os tipos.
Tem-se como principal característica da globalização a interdependência econômica, traduzida na intensa concorrência em torno dos fatores de produção, ou seja, no capital e no trabalho. Essa interdependência faz afirmar o caráter excludente das práticas político-econômicas próprias do fenômeno.
Essas práticas encontraram lastro nas teorias neoliberais¬ que conduziram e nortearam os sistemas econômicos dos principais pólos econômico-industriais do mundo, a saber, Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão .
Neste sentido, exacerbando as interdependências, o projeto globalizador destrói e reformula as práticas identitárias anteriormente atreladas, sobretudo ao território nacional. Percebe-se, portanto, o enfraquecimento da cidadania e, cada vez mais, a imposição de modos e costumes padrões, ditados pela lógica do capital especulativo e pelo consumismo desenfreado que a sustenta.
Desta forma, conceitos como país, região e imperialismo foram rechaçados por Yves Lacoste pois, não mais davam conta das novas dinâmicas e fenômenos espaciais que se originaram com o processo da globalização.
Os espaços, indubitavelmente, são frutos de processos históricos, posto que resultado das interações humanas ao longo dos tempos, portanto:


a paisagem manifesta a historicidade do desenvolvimento humano, associando objetos fixados ao solo e geneticamente datados. Tais objetos exprimem a espacialidade de organizações sócio-políticas específicas e se articulam sempre numa funcionalidade do presente.


Entende-se, pois, o processo de globalização como um dínamo conversor de culturas e costumes, ações e reações, práticas de produção e comercialização, formas de pensar e modos de vida, em um complexo homogêneo e indefinido, reestruturando uma nova valorização subjetiva do espaço, do material e do vivenciado.
As apropriações dos espaços nas suas mais variadas formas (uso do solo, construções representativas do poder, distribuição de terras, etc), encontram-se em função de três elementos básicos não constantes: a cultura, a política e as ideologias.
Cada povo, cada etnia, tem costumes próprios definidos a partir de necessidades específicas, adequadas às suas experiências e conveniências. Temos assim que:


a produção do espaço social é um processo teleológico (...) ele envolve uma finalidade. Esta orienta o trabalho humano, diferenciando-o da atividade animal. Trata-se da ação dotada de um sentido atribuído pelo executante. Um movimento que obrigatoriamente se realiza através de sujeitos, individuais e/ou coletivos que ao agirem desencadeiam séries causais. Isto coloca o imperativo de se compreender as motivações envolvidas para dar conta da produção do espaço, pois são elas que impulsionam os sujeitos. Os atores são movidos por necessidades, interesses e sonhos.


Portanto, percebe-se na atualidade a submissão dessas motivações a uma ordem única: a global-neoliberal. As representações sociais acabam por se transformar e se massificar, homogeneizadas, por exemplo, em sites, shoppings ou fast foods. Segundo Márcio Piñon de Oliveira, tal fator decorre:


do acentuado processo de globalização da economia e da cultura que impõe uma nova lógica, complexificando as escalas territoriais e pondo em questão pressupostos básicos do Estado-nação como os da nacionalidade e da representação política(...).


A compreensão da individualidade de uma nação marcada pela sua territorialidade, nesta perspectiva, se dissolve, perde seu sentido. Os territórios não mais podem ser medidos ou compreendidos em espaços físicos, políticos, econômicos, ou de qualquer outra natureza. As preocupações devem ser temporais, uma vez que “o tempo é balizado pelo lugar e, neste sentido, é que se pode dizer que o tempo é determinado pelo espaço”.
Ademais, o Estado, como organismo político administrativo determinado em uma nação soberana ou divisão territorial, que ocupa um território determinado e é dirigido por governo próprio, constituindo-se pessoa jurídica de direito público internacionalmente reconhecida adquiriu, com o processo de globalização, uma nova lógica, desempenhando outro papel. Dessa forma:


Podría decirse que en muchos casos se asiste a una renacionalización de los estados. Las formas que toman estos procesos pueden ser muchas y más o menos explícitas, dependiendo de las circunstancias de cada estado y de cuál sea el adversario al que se quiere dar respuesta: la globalización o la, presunta o efectiva, fragmentación interna.

Contudo, a questão do espaço — em especial do Estado-nação — é somente um dos elementos para a compreensão do processo de esteriotipação das condutas mundiais. Os elementos étnicos, anteriormente tidos como definidores de culturas, tornam-se agora inibidores desta. Não mais devem existir “culturas”, mas sim “uma cultura única”: a cultura global, na qual todos pensem da mesma forma reproduzindo, assim, o sistema.
Se por um lado a globalização unifica as sociedades ela também as separa, criando núcleos de resistência locais, não necessariamente definidos em espaços físicos mas, principalmente noutras estratégias que, nas suas especificidades, se confundem cada vez mais em torno da grande aldeia livre de fronteiras. O mundo globalizado se sustenta dos mundos locais.
Concorda-se, dessa maneira com o pensamento de Stuart Hall que considera como uma das conseqüências da globalização:
O fortalecimento de identidades locais (...) na forte reação de grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas. (...) Isso freqüentemente está baseado no (...) ‘racismo cultural’.

Ainda citando Hall:
O que essas comunidades têm em comum, o que elas representam através da apreensão da identidade [local] (...) não é que elas sejam, cultural, étnica, lingüística, ou mesmo fisicamente a mesma coisa mas que elas são vistas e tratadas como ‘a mesma coisa’ (...) pela cultura dominante.

Percebe-se assim que o processo de globalização é, por si e, em si, excludente e alienante. Excludente na medida em que nega a possibilidade da liberdade, criando mecanismos que validam a idéia de que uns são mais livres que outros, garantindo assim a “livre-concorrência” (para aqueles que são mais livres, claro...) e a ocupação e controle de mercados no nível mundial. Alienante, na medida em que produz e vende padrões pré-determinados para a auto-sustentação do processo. Diz Milton Santos:
Uma coisa é um sistema de relações, em benefício do maior número, baseado nas possibilidades reais de um momento histórico; outra coisa é um sistema de relações hierárquico, constituído para perpetuar um subsistema de dominação sobre outros subsistemas em benefício de alguns.

O espaço vivido fomenta a ação do homem sobre o meio que o cerca. Quando este espaço se perde ou se confunde, as marcas deixadas se alteram, se anuam e se igualam desconfigurando ou superconfigurando os espaços em função de interesses predeterminados pela lógica do capital.
No mundo globalizado o espaço físico vivenciado é indefinido; somente é percebido nas rugosidades do cotidiano. Vários mundos presos no supramundo globalizado, vários mundos individualizados na massificação pretendida. Paradoxo da globalização: o processo que unifica também individualiza.
É fato inconteste:
que a organização dos lugares obedece a funções e necessidades da produção, que a disposição dos objetos responde a imperativos técnicos, que os padrões espaciais do capitalismo por exemplo, revelem a ânsia do lucro.

A globalização, portanto, desponta para práticas e tendências que a nutrem e reforçam. Os equipamentos políticos, as indústrias e os mercados devem estar em todos os pontos do globo, e quanto mais livres de fronteiras (econômicas principalmente) tanto melhor.
Valendo-se do conceito foucaultiano de heterotopias, Edward Soja confirma tal pensamento, afirmando que as sociedades vivem em determinadas espacialidades e essas são transformadas e reformuladas numa dialética inconstante, porém ad perpetum, de acordo com o seu tempo. Dessa forma, velhos espaços se vestem em novos sentidos. Uma nova configuração espacial se vai criando sobre o planeta.
Os países, principalmente aqueles detentores do capital mundial, buscam a formação de grandes blocos de parceria econômica. Surgem moedas únicas que circulam livremente por todo um conjunto de países, espécie de megapaís, beneficiando alguns e explorando cada vez mais outros.
Neste sentido, a Geografia deve ser compreendida como uma análise dos lugares enquanto representações. Deve-se entender por esta ciência:
O discurso sobre o espaço em si mesmo apreendido enquanto produto histórico e cultural, pré-ideação básica na produção do próprio objeto sob o qual se exercita. Resgata-se então a consciência do espaço diretamente como tema de análise.

O mundo globalizado necessita de teorias que o sustentem. Teorias as mais gerais possíveis e, sendo assim, uma nova “corrente” de pensamento surge. O pós-modernismo, sistema de reflexão, por excelência, dos novos fenômenos nascidos das novas transformações sociais, políticas, econômicas, culturais, etc, que serve de suporte para as bases teórico-metodológicas — se é que essas existem no pós-modernismo.
É da fusão dos dois conceitos modernos tempo e espaço, coordenadas básicas de todos os sistemas de representação, que surge um terceiro totalmente novo e original, típico da pós-modernidade: tempo-espaço.
O geógrafo David Harvey, no seu livro Condição Pós-moderna, apresenta vertentes explicativas da questão do tempo-espaço presentes no pensamento pós-moderno. Segundo ele, esse recente problema epistemológico tem sido explicado, pelo menos, de quatro formas diferentes, desde a mais alta e vaga afirmação de que tudo é espaço-tempo, passando por explicações-slogans, principalmente adotadas nas práticas políticas (das direitistas às esquerdistas), tendo ainda em uma terceira dimensão os escritos de Baudrillard e Virilo como forma de dominar a questão e espelhá-la. A quarta possibilidade de entendimento da problemática pede a seguinte citação:
encontrar um nicho intermediário para a vida intelectual e política que recusa a grande narrativa, mas nem por isso deixa de cultivar a possibilidade de uma ação limitada. Trata-se de do ângulo progressista do pós-modernismo, que acentua a comunidade e a localidade, as resistências locais e regionais, os movimentos sociais, o respeito pela alteridade. Trata-se da tentativa de extrair ao menos um mundo apreensível da infinidade de mundos possíveis que nos são mostrados diariamente na tela da televisão. Em sua melhor versão ela produz vigorosas imagens de possíveis outros mundos, começando até a moldar o mundo real.

Apesar de ser esta a possibilidade mais plausível para a solução do problema espaço-tempo, ela também traz seus obstáculos à pronta aceitação das nuanças de seu discurso. De fato, todos as teorias pós-modernas sofrem um problema de ordem, quiçá, metodológica: a hiper-retórica.
Outras formas de sociabilidade, outras relações de convívio têm sido apresentadas (leia-se impostas) às sociedades mundiais, não respeitando as diferenças de crença, sexo, idade, nacionalidade. A democratização dos espaços criou como que numa comprovação da lei Newtoniana, reação de igual proporção e sentido contrário: a perda da cidadania.
Cidadão, na acepção principal da palavra, é o indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este. Se não mais existem estados, não mais existem cidadãos.
Logo, temos que o processo de globalização ao desconstruir o conceito de cidadão, se contradiz numa de suas pretensões: — Como se pode democratizar a economia, a informação, ou a cultura, se não se permite o básico direito da livre soberania popular caracterizada no indivíduo-cidadão?
Com o “falecimento” do Estado-nação e com a queda da compreensão moderno-iluminista do conceito de cidadão, o mundo se redefiniu, instaurando novas dinâmicas sociais, propriamente pensadas com a capacidade de transfigurar pessoas e comportamentos em virtude de suas próprias expectativas. Percebe-se, assim que:
o ‘sistema dinheiro’ se tornou um fim em si mesmo. Não é mais subsidiário do Estado e da sociedade, mas ao contrário é o ponto de partida e o objetivo último das relações entre os homens. Desse modo, estamos diante da ausência de um princípio ético regulador das relações humanas da qual somos prisioneiros. E é nesta trama que se inscreve hoje, de forma profunda, a questão da cidadania.

A globalização e sua improbidade consumista apresentou ao mundo uma nova forma de cidadão: o cidadão-consumidor. Personagem-típico do mundo globalizado, o cidadão-consumidor é, em si mesmo, alheio às situações sociais que o cercam. Seu mundo se limita aos muros invisíveis, intangíveis e muitas vezes intransponíveis do mercado mundial que o sufocam.
Acerca deste indivíduo — e pensa-se indivíduo na plenitude da palavra, uma vez que recolhido do todo social — Milton Santos nos afirma:
o consumidor não é cidadão. Nem o consumidor de bens materiais, ilusões tornadas realidades como símbolos; a casa própria, o automóvel, os objetos, as coisas que dão status. Nem o consumidor de bens imateriais ou culturais, regalias de um consumo elitizado como o turismo e as viagens, os clubes, e as diversões pagas; ou de bens conquistados para participar ainda mais do consumo, como a educação profissional, pseudo-educação que não conduz ao entendimento do mundo.

Temos assim a globalização como um processo impossível de circunscrição apenas a um determinado âmbito social. Pode-se mesmo afirmar que ela construiu um novo homem, para além (melhor pensar para aquém) do homo sapiens. A própria humanidade se tem transformado, vive-se o tempo do homo globalis.
Discutir o fenômeno da globalização no domínio da Geografia é, portanto, compreender elementos-chaves deste processo (tempo-espaço, pós-modernidade, Estado-nação, lugar, etc) e, em cada um, buscar explicações sobre as transformações sociais que têm redimensionado o(s) mundo(s), reestruturado a(s) política(s), redefinido a(s) economia(s) e remodelado a(s) cultura(s). Percebe-se, por fim, que a globalização traz uma profunda mudança nas formas de viver, sentir e pensar o mundo — e por que não dizer propriamente no mundo?

BIBLIOGRAFIA
• CASTRO, Iná Elias de et all (org.). Geografia: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
• FONT, Joan e RUFI, Joan. Geopolítica, Identidade y Globalización. Barcelona: Ariel, 2001.
• GOMES, Paulo César da Costa. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
• HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.
• HARVEY, David. Condição Pós-moderna — Uma Pesquisa Sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo: Loyola, 1999.
• MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias Geográficas – Espaço, cultura e política no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.
• OLIVEIRA, Márcio Piñon de. Geografia, Globalização e Cidadania. Terra Livre, São Paulo, n.15.
• SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.
• _____________. Técnica, Espaço e Meio Técnico-Científico. São Paulo: Hucitec, 1994.